:: o som

agosto 15, 2007



Como falar de dentro do som?
Há uma vibrante reflexão de um intérprete de jazz que anda próximo de o conseguir.
Existe, diz ele, aquela canção que nos conta uma história. Sugere-nos determinado estado de espírito. Acompanha-nos ao longo do dia. Compõe determinado quadro. E se for boa – se for competentemente elaborada e meticulosamente executada, se activar todos os botões certos – permite atingir notáveis zonas de intensidade e de impacto. Fornece-nos um sentimento forte, excita-nos e distrai-nos. Mas a sensação é descendente. O impacto é temporário. A história, por mais que nos toque, pertence, ainda assim, a um tempo particular, a um lugar, a uma fase de estilo, a um dado contexto cultural. Perecível em virtude do seu próprio excesso de significado e de literalidade, a canção está datada. Está destinada à nostalgia. Não interessa o quanto a canção inicialmente mexeu connosco; é possível que mais cedo ou mais tarde acabemos por partir; e, quando o fizermos, deixaremos essa canção para trás.

Então, há uma outra canção que inspira uma história que nós próprios podemos contar. Esta canção pergunta-nos como nos sentimos. Deixa-nos guiá-la para onde nos fizer sentido levá-la. Providencia-nos uma paleta de cores, as tintas, talvez até um esboço preliminar; mas dá-nos o pincel e a escova de pintura. Com eles se constrói o cenário à nossa volta. O seu conteúdo são os nossos amigos do costume (e também os inimigos). Eles falam um dialecto que nós entendemos sem reservas. Somos parte integrante da acção. A história deixa uma imensidão de espaço para a nossa singular imaginação. Envolve-nos. Não apenas tolera quanto, sobretudo, solicita a nossa participação interveniente. E se for boa – se for poderosa, se for inventiva, se for sedutora – então a experiência emocional que ela garante situa-se a um raro nível de profundidade, em virtude da nossa participação efectiva na sua criação. O impacto é duradouro: porque foi condicionado e fortificado desde o interior. A história permanece: porque nos percorre, onde quer que estejamos, onde quer que a contemos. A canção é para sempre. É intemporal. Está sempre connosco, porque a canção somos nós.
É esta a canção que o intérprete de jazz procura. '

' Rui Cunha Martins, in usp utopias.sonhos.projectos (ex-projecto comum)

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