:: amor digital

novembro 10, 2004

Não consigo começar a escrever. Toca o meu telemóvel a anunciar mensagem escrita, toca o da minha filha em desgarrada com o meu. O teor das mensagens é mais ou menos o mesmo; as dela são escritas numa espécie de morse, um labirinto de linguagem teen, infinitamente mais rápida de debitar do que a minha já anacrónica para a era.

E tenho pena.
Pena, por ter de acelerar a minha capacidade de resposta na ponta do dedo. Pena, por não poder saborear devagar cada letra, como as sopas de letras que nos distraiam em palavras de massinhas, equilibradas na borda do prato. Pena, por todo o mecanismo desencadear em mim um nervosismo sobresselente, uma espécie de dependência digital do aparelho e do outro, e do efeito que o meu dedo causa no outro. É giro. Infinitamente giro, como infinitamente mortal porque, como qualquer outra droga, vicia, desarma e evita que as pessoas se olhem e se saboreiem com o olhar, se deliciem no prazer dos gestos, na forma a informar a forma...

O dedo leva-nos a conta-gotas até ao outro, um conta gotas rápido de mais, uma espécie de soro que entra de repente e nos cria a fantasia de sermos donos do mundo. Mentira é mentira. Ninguém ama alguém tipo ET ao toque do dedo no alfabeto, ninguém constrói amizades, inventa relações, governa a vida se não for à moda antiga, cumprindo etapas, marcando encontros, pensando a dois, saboreando uma santola e umas amêijoas numa saudável tagarelice ao fim da praia. Ou tocando. Não no inventor de sonhos, mas na mão do outro.

Hoje já não se comunica, contacta-se. E o contacto virtual e digital, através de todos os aparelhos domésticos e portáteis que temos ao nosso alcance, não é nunca a forma certa de estar com o outro, não é a mais certa mas, a mais fácil e curta. Há lá alguma coisa que se compare aos olhos do outro?

Por isso gosto tanto dos olhos. Gosto da luz líquida dos olhos. Costumo dizer que me basta ver a cara das crianças nas escolas que tenho andado a visitar, para perceber muito mais do que em mil e um relatórios que me possam dar para ler. Comunicar não é tão complicado como parece, nem tão simples assim. Tem-se medo de comunicar, tem-se medo deste encanto e deste veneno, absorvemo-nos nas mil e uma formas que podemos dar às letras. Tornamo-nos poetas e músicos, mágicos e malabaristas de letras pessoais e intransmissíveis na nossa versão virtual de circo encantado e o pior é que as tomamos como suficientes para aproximar, para estar perto, para tornar ainda mais saudosas as saudades.

Gostamos das palavras, isso sim, gostamos tanto das palavras, da sua doçura velada, que estamos longe de perceber como são finitas quando se confinam a ser só palavras fechadas em cofres digitais. Apaixonam, redimem, sobram, faltam, mas não são nossas, são iguais às do outro, iguais às do gajo na toalha estendida ao lado da nossa, estranhamente iguais. O que as distingue são as emoções que em nós se fazem, o que as distingue é a nossa capacidade de pegar nelas, descer ruas a pino, encontrar a tal esquina prometida e fazer delas das suas metáforas, das cores, das imagens «pessoas crescidas» que andam e falam e têm vida própria.

Mas não,
ainda que se viva no mesmo quarteirão, vivemos cristalizados no interior da nossa cabeça, só aí, sobretudo aí, quando as pernas não chegam para tudo e o dedo vai mais longe desdobrando-nos em infinitas combinações e matrizes possíveis e capazes de nos enlouquecer. Tudo isto sem sair de casa, como cápsulas que se tomam para alienar a fome, tipo Guerra das Estrelas, quando já poucos querem comer a sério ou sentir a sério. Ou dar e receber a sério.

Eu gosto delas, do seu vazio luminoso, aquecem-me e levam-me para perto das pessoas de quem gosto. Mas a fórmula - I miss you. I love you. I call you - não é desculpa para tudo. Só por si vale pouco, como as batatas sem bife, dão sabor, apimentam, agigantam a vontade, compõem um prato mas, só por si, valha-me Deus! E o bife ? É a bife que nos movemos. Sem bife, que se lixem as batatas!

Eu cá gosto de gostar devagarinho, gosto que me vejam abrir a porta com os cabelos primeiro, depois com os olhos e no fim com o meu sorriso habitual. E de ser por mim que esperam. Gosto de subir as escadas a saltar degraus, gosto de tocar, gosto de rir a meias, de tomar banho a meias, gosto de acordar com quem gosto, de descer ruas e cruzar rios, para ir outra vez adormecer nos braços de quem gosto.

Gosto muito mais do amor antigo do que este «à la carte» que ainda por cima agudiza as saudades e mata a coragem de matar as saudades de viva voz. Dantes, as cartas a tinta permanente, em dobras macias e eternas, demoravam o tempo todo do Sol e da Lua a cumprir-se, mas guardavam-se no cantinho do coração e não havia delete que as arrumasse na poeira do tempo.Tenho pena que este prazer digital asfixie o sabor da pele, a luz macia da voz, os gestos do olhar, premiando olimpicamente a pressa do tempo numa espécie de pombo-correio em voo picado telecomandado por nós, eternos fabricantes de sonhos.


por Maria João Lopo de Carvalho _ vidasexpresso _ 27.07.2mil4

1 comments

  1. Anónimo3.6.07

    uma treta! o certo é k a maior parte das pessoas usa o computador- só em casos muito especiais é que se escrevem cartas

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