:: amor digital

julho 12, 2012



hoje já não se comunica, contacta-se.
o dedo leva-nos a conta-gotas até ao outro, um conta gotas rápido de mais, uma espécie de soro que entra de repente e nos cria a fantasia de sermos donos do mundo. temos uma espécie de dependência digital do aparelho e do outro, e do efeito que o meu dedo causa no outro. é giro. infinitamente giro, como infinitamente mortal porque, como qualquer outra droga, vicia, desarma e evita que as pessoas se olhem e se saboreiem com o olhar, se deliciem no prazer dos gestos, na forma a informar a forma...
e o contacto virtual e digital, através de todos os aparelhos domésticos e portáteis que temos ao nosso alcance, não é nunca a forma certa de estar com o outro, não é a mais certa mas, a mais fácil e curta. ninguém ama alguém tipo ET ao toque do dedo no alfabeto, ninguém constrói amizades, inventa relações, governa a vida se não for à moda antiga, cumprindo etapas, marcando encontros, pensando a dois, saboreando uma santola e umas amêijoas numa saudável tagarelice ao fim da praia. ou tocando. não no inventor de sonhos, mas na mão do outro.

tem-se medo de comunicar, tem-se medo deste encanto e deste veneno, absorvemo-nos nas mil e uma formas que podemos dar às letras. tornamo-nos poetas e músicos, mágicos e malabaristas de letras pessoais e intransmissíveis na nossa versão virtual de circo encantado e o pior é que as tomamos como suficientes para aproximar, para estar perto, para tornar ainda mais saudosas as saudades. gostamos das palavras, isso sim, gostamos tanto das palavras, da sua doçura velada, que estamos longe de perceber como são finitas quando se confinam a ser só palavras fechadas em cofres digitais. apaixonam, redimem, sobram, faltam, mas não são nossas, são iguais às do outro, iguais às do gajo na toalha estendida ao lado da nossa, estranhamente iguais. o que as distingue são as emoções que em nós se fazem, o que as distingue é a nossa capacidade de pegar nelas, descer ruas a pino, encontrar a tal esquina prometida e fazer delas das suas metáforas, das cores, das imagens, das pessoas que andam e falam e têm vida própria.

eu cá gosto de gostar devagarinho, gosto que me vejam abrir a porta com os cabelos primeiro, depois com os olhos e no fim com o meu sorriso habitual. e de ser por mim que esperam. gosto de subir as escadas a saltar degraus, gosto de tocar, gosto de rir a meias, de tomar banho a meias, gosto de acordar com quem gosto, de descer ruas e cruzar rios, para ir outra vez adormecer nos braços de quem gosto. vivo muito mais do amor antigo do que este «à la carte» que ainda por cima agudiza as saudades e mata a coragem de matar as saudades de viva voz. dantes, as cartas a tinta permanente, em dobras macias e eternas, demoravam o tempo todo do Sol e da Lua a cumprir-se, mas guardavam-se no cantinho do coração e não havia delete que as arrumasse na poeira do tempo. tenho pena que este prazer digital asfixie o sabor da pele, a luz macia da voz, os gestos do olhar, premiando olimpicamente a pressa do tempo numa espécie de pombo-correio em voo picado telecomandado por nós, eternos fabricantes de sonhos..


adaptado de Maria João Lopo de Carvalho _ vidasexpresso _ 27.07.2mil4

1 comments

  1. Gostei muito do que li e tomei a liberdade de citar perte do seu post, no meu blog, com indicação do seu como é óbvio.
    nany

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