:: gravado em ti

maio 06, 2014



nunca gostei do anel que marido e mulher usam. porque tem pouco de pessoal, tem pouco de história, de amor. porque tem muito mais de posse, de padrão, de obrigação: porque todos usam no mesmo dedo, no mesmo formato, e para todos, significa o mesmo. e eu não gosto de coisas padrão. por isso prefiro, muito mais, todos os anéis, fios, pulseiras que tem uma história própria, um significado seu. que são usados não porque sim, mas porque apetece naquele dia, naquela hora. não porque estão sempre lá - mas porque estão sempre a ser lembrados de se porem lá. bonito quando alguém usa um fio porque acordou a pensar no que ele significa. bonito quando alguém usa uma pulseira apenas porque lhe apetece beijá-la no pulso durante o dia. porque ai sabemos que estamos ali, não por hábito, mas por uma vontade idiota, quase infantil -mas pura-, de estar junto.

por isso, quando dou ou recebo um fio, uma pulseira, um anel, tenho sempre de lhe registar o motivo. a razão. pode ser o mesmo anel, lindo, brilhante, valioso, mas sem aquela data gravada por dentro, vale metade. não de valor material, mas do outro, o que interessa: o valor do que se sente, não do que se tem. importante saber o que se escreve, o que se grava. não precisamos ser óbvios, nem exibicionistas, nem descritivos demais. não, porque são apenas sinais que se deixam. uma letra, um número, um abreviatura. algo que seja tão obviamente simples, não para quem lê, mas para quem sabe o que ali está. aquele fio, podia ser igualmente bonito no pescoço de quem gostamos, mas sem aquelas pequenas medalhas com as iniciais discretas da família, nada valia. a pulseira que trago no pulso, até pode não ter estilo (que tem), até pode não ficar bem na formalidade do fato de trabalho, mas que interessa isso, se tem gravada nela o dia mais importante da minha vida..

porque não há nada mais doce que vermos alguém a vestir a nossa história. quando alguém chega ao pé de nós, e de repente, quando tocamos a mão, sentimos aquele anel no dedo menos óbvio. quando duas amigas se encontram ao fim de uns meses, e sem combinarem levam a mesma pulseira que um dia gravaram juntas. quando alguém, no meio de um almoço deixa cair o fio para fora da blusa e trocam-se dois risos tontos, apenas de quem sabe o que ele significa. como naquele dia, em que me mandaste uma foto em lágrimas, a beijar as medalhas do teu fio. e sem falares, sem me dizeres nada, fizeste a mais bonita declaração de amor. porque não beijaste apenas um fio, beijaste toda a história que ele tem. ali, naquele fio nosso, sei que vou contigo para o todo o lado. não no teu dedo, não no teu pescoço, mas onde fico mais homem: gravado em ti..

:: o tempo

abril 30, 2014



o tempo - as horas, os dias - é a maior marca do que se gosta. quando duas pessoas se querem de verdade, sejam amigos, amantes ou irmãos, o tempo é sempre pouco quando estão juntos. ou passa sempre depressa demais. ou nunca chega para todas as conversas. nunca dá para todas as histórias que se querem contar, para todas as músicas que se querem ouvir. uma merda, ainda agora ali chegamos e já temos de ir. mas sabe bem sentir que o tempo passa a correr, que já temos tanta coisa para falar no próximo encontro, no próximo telefonema. porque neste, já não deu. as pessoas que contam são aquelas em que o tempo nunca chega para dizer tudo, fazer tudo, partilhar tudo. são aquelas em que o tempo sabe sempre a pouco.. e por isso, sabe a tanto.

o tempo - as semanas, os meses - é também o teste do algodão. tudo o que é verdadeiramente bom, não de esvai com o tempo, não fica menos forte, não se gasta. pelo contrário, tudo o que nos faz bem, tudo o que nos faz melhores pessoas, fica sempre maior com o tempo. sim, maior. porque uma amizade a sério, não é aquela que apenas dura para sempre - é aquela que cada dia é mais próxima. porque uma paixão louca não é aquela que apenas dura muito - é aquela que cada dia nos rouba mais lucidez. porque um amor de verdade não é aquele que nos preenche todos os dias - é aquele em que todos os dias são poucos para o viver. como quando se chega ao fim do almoço e telefonam do escritório para a reunião - já? sim..já. ou quando se chega ao fim da tarde, daquelas em que apenas se namorou, e se apanha o susto no relógio: jáá?!?!! sim..já. ou quando se chega ao fim de uma noite junto e, de repente, é já de manhã..

o tempo - o nosso - deve ter o contador avariado. só pode. estragou ali qualquer coisa no relógio. quando estamos juntos passa depressa demais. quanto estamos longe, não passa. tantas, o número de vezes que olho para o telefone a pensar que já não falo contigo há horas.. e afinal foi há 10 minutos. tantas, o número de vezes que falamos de coisas de há muito tempo.. que afinal, foram há dois dias. o nosso tempo é vivido noutra escala, noutro ritmo. porque tudo é mais intenso, mais preenchido, mais forte. mais louco. mas amar é isso: é termos aquela magia de conseguir viver num minuto - juntos -, bem mais do que se vive numa hora - separados. aquela sensação que esticamos o dia, como se o tempo fosse um elástico, que puxamos sempre mais um bocado, e em que cabe sempre mais um riso, mais um beijo, mais uma palavra tonta. único no nosso tempo é saber que, mesmo sem nunca o termos tido só nosso, já fizemos em meses, mais do que a vida nos deu em anos. por isso, sei bem qual é o meu 'paraíso na terra'. simples, é o sitio mais bonito que conheço: é ter todo o teu tempo.. ao meu lado.

:: família cuya

abril 17, 2014



família é uma palavra bonita demais, a que tantas vezes não damos o devido respeito. nem valor. porque deve ser o maior elogio que alguém nos pode dar: chamar-nos família.
a primeira família que temos, a de sangue, como se costuma dizer não se escolhe. não se encontra. e por isso é tão especial, porque somos sangue do mesmo sangue, gene do mesmo gene, porque nascemos juntos, somos o nosso clã: aqueles que serão os nossos para sempre. mas depois existe a família que vai crescendo ao longo da vida, não pelos laços de sangue ou parentesco, mas pelos amigos que viraram primos, tios, manos e manitas. sim, porque aos amigos que são mais, dá-se um nome de família. são meus amigos? não, são minha família..

a diferença da família para os amigos é a presença. os amigos vão e vem. estão mais próximos ou mais longe. a família não está, é! a família nunca fica longe, fica apenas mais calada. os amigos chateiam-se, a família entende. os amigos cobram quando não telefonamos. a família telefona. os amigos não sabem quando são os momentos importantes da vida. a família aparece sempre sem precisar de aviso: lá de trás da porta, da casa ao lado, do outro lado do mundo, mas aparece sempre. e continuam as mesmas conversas de sempre como se fossem ontem. os amigos combinam para se encontrar. a família bate-nos a porta. aliás, a família entra pela porta mesmo sem bater, porque tem a chave de casa. aos amigos dizemos que gostamos. à família dizemos que os amamos. dos amigos sentimos saudades. da família sentimos a falta. os amigos enchem-nos os dias de coisas boas. a família enche-nos a vida de coisas boas.

como ontem, quando um dia difícil se meteu no meio de nós, apertou-nos o coração, quebrou-nos as forças. dia de merda, deixou-nos os olhos em lágrimas. mas o dia, mesmo duro - muito duro -, foi mais fácil porque a família estava lá. e nem foi preciso combinar: foram aparecendo, almoçou-se, conversou-se, fez-se companhia, bebeu-se uma verde, amparou-se os abraços, e os braços. e juntos, fomos família pela primeira vez num dia difícil. e juro que se cantou noite dentro:
"- esse coração assim desagasalhado, vais sair assim?
não, não vais. saíste com um riso, mesmo no meio das lágrimas, deixaste a janela do sorriso aberta, coisa boa, coisa desperta. e olha: deixa-te de complicação, liberta a alma dessa prisão, deixa-te guiar pelo coração. porque há um bom feeling dentro de ti. um bom feeling dentro de nós, familia cuya.."

:: o rimmel, apenas

março 19, 2014


Eugène Rimmel (1820) nasceu em França e cedo emigrou para Londres onde ajudou o pai na perfumaria da família. apaixonado pelas actrizes de teatro inglesas, criou vários produtos de beleza para elas, sendo considerado como o pai da cosmética feminina - e o rimmel o seu produto mais famoso. assim, com um bocado de história, tenho ainda mais certeza que o rimmel é definitivamente "o" cosmético. confesso que tudo resto para mim já é adereço: batons, bases, blushs, máscaras -whatever-, já são demais. um rosto feminino tem de valer por si, pelo seu brilho, pela alegria - ou melancolia -, mas sempre pelo que transmite. e o rimmel é o único cosmético que não disfarça, não engana, não troca o tom. simplesmente destaca o essencial de um rosto: o olhar.

o raio do rimmel, invenção perfeita, tem uma qualidade única: é multifacetado. é o equivalente a um blusão de cabedal preto no roupeiro de um homem: dá com tudo. uma mulher pode estar mais desportiva, mais discreta ou mais efusiva, com cabelo despenteado ou na perfeição de um jantar de gala, que o rimmel fica sempre bem, complementa sempre. mesmo discreto, no meio de todos os outros cosméticos, marca sempre! mas uma mulher que usa rimmel, apenas, prende-me definitivamente a atenção. porque implica uma mistura de confiança e transparência, de certeza em si: na personalidade do rosto e na profundidade do olhar. beleza pura.

o rimmel tem ainda uma diferença que o torna invejável: é o único cosmético que fica bonito quando esborrata. uma mulher que chorou, por dor, por alegria, ou apenas por desabafo, e que esborratou o rimmel, fica ainda mais bonita. quando aqueles traços a preto no rosto mostram as marcas do choro, do sentimento que saiu na forma mais sincera: uma lágrima.
é sempre um momento de ternura imenso quando salivo o dedo, e te limpo as marcas debaixo dos olhos, antes de te sossegar a cabeça no meu peito. como é ainda mais doce, quando acordo antes de ti, vejo o sol a aparecer na tua pele, semi-tapada pelos lençóis desanjarrados, e deixo-me ali, até acordares, me sentires ao teu lado, e soltares um sorriso lento, preguiçoso, mimado, enquanto sussurras baixinho que me amas - com aquele brilho doce nos teus olhos, vestidos de rimmel, apenas..

:: o palato

março 11, 2014



o palato é aquela coisa que nos deixa perceber o sabor da vida. no inicio aprendemos a distinguir os sabores básicos: o doce e o salgado. o açúcar que acompanha o café da manhã, que fecha a refeição, seja no doce ou na fruta. tal como com as pessoas doces, o açúcar acalma, harmoniza, sossega. o sal por contraponto espicaça os sabores, solta o paladar para as carnes, os peixes, os legumes salteados. deixa-nos com sede, puxa pelo vinho, pela cerveja, pelo espumante. uma pele a saber a água do mar torna qualquer beijo mais apetecível, desejado mesmo. tal como as pessoas salgadas, o sal puxa pelo lado mais saboroso, destaca, revela.

mais tarde aprendemos a gostar das misturas. como os scones, com o formato açucar/sal, aquele agri-doce que nos deixa confusos, que nos baralha a percepção, mas que estimula a atenção. uma pessoa demasiado doce, enjoa. uma pessoa demasiado salgada, cansa. mas aquelas personagens de toque agri-doce apaixonam, entre o doce carinhoso e o salgado safado. aquele dá e tira. aquele lamechas que diz a declaração mais intensa e no momento a seguir goza com o maior dos desplantes. mas com a idade refinamos a coisa, conhecemos mais sabores, mais mundos, e descobrimos os sabores mais intensos: a pimenta sempre forte em cima da massa, a hortelã caída no meio do gin, a lima amarga no meio da tarte doce, o gengibre a cortar o sushi pálido. e juro que nas pessoas vai sendo exactamente o mesmo: com a idade, há sempre um sabor novo, uma mistura inesperada, mais uma hipótese de ementa.

até que um dia, descobrimos o jindungo. uma espécie de piri-piri, mas mais forte que tudo. mistura de pimenta com picante, sabe à força do calor. daqueles sabores que entram na boca e estrilhaçam tudo o que conhecíamos antes: mais forte, mais intenso, shot de sabor, deixa-nos com um esgar de olho, um arrepio na garganta, e um sorriso no nervo. agora, perfeito, é ter a arte e engenho para misturar tudo isto numa única ementa, daquelas com um prato para cada dia, sempre bom, sempre a saber a mais. ou então, ter a sorte de encontrar alguém que tenha estas coisas todas: o açúcar no olhar, o sal no corpo, a pimenta na língua, o gengibre na boca e uma alma jindungueira - daquelas que estrilhaçam tudo. e raios míuda, tu, jindunga disfarçada de cupcake, és a ementa perfeita para o meu palato: puxas-me todos os nervos, deixas-me a boca em festa, e os olhos a brilharem. tu, deste-me cabo das certezas, dos sabores que tinha, das misturas que controlava. melhor, soltaste o jindungueiro que havia em mim. e hoje, sei saborear melhor a vida. alma gémea? mais que isso, palato igual..

:: my baby

março 11, 2014



when a man loves a woman, can't keep his mind on nothin' else,
yes,when a man loves a woman I know exactly how he feels,
'cause baby, baby, you're my world..


tu, és a mulher mais perfeitamente imperfeita que conheço. feitio bravo, gajão sempre alerta, cheia de defeitos, de tropeções, de coisas que ias fazer mas não fizeste - que adias sempre mais um pouco. gaja independente, sempre a precisar daquele espaço só dela, a desaparecer umas horas. sempre ligada, mas lá no teu canto, na cadeira do cigarro, longe de todos e de tudo. na tua toca, onde te sentes protegida só contigo. e o que eu amo - ou aprendi a amar - essa tua forma de saberes estares bem só contigo. se saberes ser só por ti. e como ficas bonita a berrar-me quando quero tratar de ti, só porque não estás habituada a isso. reages como se não gostasses, como se não fosse bom. e sentes-te tonta, dividida, entre quereres tanto que te ampare, e o quereres tanto continuar a ser só por ti.

tu, és a mulher mais inteira que conheço. a mãe perfeita do teu filho, a mãe que há-se ser perfeita dos nossos filhos. por ele fazes tudo, abdicas de ti, da tua vida. por ele gritas-lhe quando não queres, mas que sabes que tem de ser. por ele emocionas-te quando diz que te ama, como se fosses uma criança a receber o prémio da vida. mulher de família, queres sempre o bem de todos antes de ti. porque os teus são mais importantes do que tu própria. porque tu hás-de aguentar, tu hás-de superar, mas os teus não tem de passar por isso - vais sempre protegê-los como se fossem o mais frágil dos cristais. e acredita que isso faz de ti a mais doce das mulheres. e saber-me um dos teus, faz-me sentir o mais privilegiado dos homens.

tu, és a mulher mais bonita que conheço. esse corpo que desliza, ar ginjão de quem se sabe bela em qualquer trapo. tens aquele toque natural que não precisa de adereços, ou pinturas, ou roupas. podes estar nua, vestida, de chinelos, ou de saltos, sabes-te sempre bonita e isso dá-te a maior das belezas num corpo: a confiança. depois esse riso e esse olhar fundo, que trazem essência ao corpo, que dão brilho á tua pele, macia, magnética. que prende, que aquece, que ama. mas és ainda mais incrivelmente bonita por dentro: o que sentes, a forma como vives, como te entregas, até a forma como és bruta quando te ferem. ao teu lado sinto o maior dos carinhos: porque sei sempre que é sincero, nada condescendente, porque sei que nunca me vais dar nada porque te peço, mas só porque quiseste dar. mas o mais bonito do teu amor é a sintonia com o meu. a forma como encaixa, como fomos feitos um para o outro. as músicas, os bons -e maus-  hábitos, a loucura saudável, a sensualidade carinhosa, o prazer lânguido, mas sempre apaixonado. nos teus braços, perfeitamente imperfeitos, inteiros e bonitos, encontrei o meu mundo. e acredita, que emociona-me cada dia, cada hora, cada momento que vivo aqui: em ti, a minha mulher.

:: o dilema da entrega

fevereiro 28, 2014



uma das eternas questões nisto dos amores é aquela dúvida: 'até que ponto nos devemos entregar?'
há quem defenda que devemos ter limites, que deve haver uma espécie de lei da compensação, quase uma balança: hoje dou um bocado, e agora espero que ele dê também, e por ai adiante, passo a passo, calculoso.. não percebo. outros defendem que, pelo contrário, nunca devemos dar tudo, para não 'habituar' mal. ou seja, apenas por estratégia, não vamos ser tudo já, para termos algo para dar mais tarde.. não percebo. há ainda quem dê, para simplesmente poder cobrar no momento a seguir: dei-te tanto, agora quero que me retribuas tudo!!.. também não percebo.

para mim, o dilema da entrega é simplesmente uma não questão. porque quando se quer, quando se gosta, dá-se e pronto. tendo apenas o cuidado da gestão do 'não sufoco', não há cá que ter meios termos, ou calculismos, ou mariquices de balanças. dá-se! e dá-se tudo o que se tem agora! porque se for a sério, descansem que todos os dias vão ter algo novo, maior, melhor, mais intenso para dar. porque quando é a sério, todos os dias cresce mais qualquer coisa: um tique novo, um ponto da pele que afinal também é sensível, uma palavra que ganha novo significado, um riso tonto que se descobre no momento mais íntimo, ou apenas uma música antiga, que de repente passou a ter significado. ou todas as musicas novas, que vão ficar para sempre marcadas entre nós os dois..

eu sou dos que vota pela entrega total, de corpo e alma. sem medos, sem orgulhos parvos, sem receios de dar sem receber. assim, tenho sempre duas certezas: que quem vive comigo tem o melhor de mim, e, que nunca vou, um dia, pensar que podia ter dado mais. e isso, saber que se deu tudo, é um alívio. o mais tonto nisto, é que só quando se entrega tudo é que se cresce como pessoa. ou seja, quem vive nesse dilema, só perde enquanto não avança. hoje, por ter-me entregue loucamente, sei que sou mais homem, mais amante, mais amigo, mais companheiro de quem me recebe. se a habituei mal? ainda bem. porque sei que ela hoje também é mais mulher, mais doce, mais sensual (e esta era difícil), e até lamechas (esta então, era quase impossível). porque sei que ela, hoje, também se entrega da mesma forma, sem medo. e essa, é a maneira mais bonita de me ter agradecido tudo o que lhe dei, sem ter de dizer sequer obrigado..

:: at last

fevereiro 27, 2014



tenho da vida, dos negócios, e dos amores, uma noção um pouco idiota sobre 'razão' e 'coração'. duas coisas que raramente andam no mesmo carril, no mesmo momento do pensamento. coração e razão são tese e antítese, atrapalham-nos os movimentos, confundem-nos na acção: são como duas cordas que puxam para dois lados diferentes. um entrega-se, outro resguarda-se. um sonha, outro desperta-nos. a razão é uma chata: chama-nos à terra, estraga-nos os sonhos, atira-nos baldes de água fria à cara. o coração é um tonto: salta por tudo e por nada, põe-nos a cara vermelha ao primeiro nervoso miudinho, bomba o sangue para onde não deve, enche os olhos de brilho idiota, e a cara de lágrimas lamechas. um diz calma, outro diz, fúria. um pensa, outro sente. atrapalham-se, tropeçam um no outro.

na vida, sempre que decidi com a razão, fiquei aquém do que podia: não arrisquei, preservei-me. na vida, sempre que decidi com o coração - especialmente nos negócios - entrei em becos apertados demais e tive de voltar atrás. deixei-me levar pelo entusiasmo. como viver então? subindo um degrau.. para ver mais acima. é que atrás da razão está a cabeça. e atrás do coração está a alma. e é aí que podemos ser diferentes, quando subimos um degrau e pensamos com toda a inteligência - a racional (a razão), mas também a emocional e a sensorial. quando subimos um degrau e passamos do coração - coisa física - para a alma, essa coisa que existe sem se saber onde. mas que existe. mesmo no meio de um caos permanente, vivo o momento mais feliz e completo da vida. porque - at last - subi esse degrau, porque ignoro a razão e o coração: simplesmente não deixo que me atrapalhem mais!

sem esses limites, vivo com os sentidos todos despertos, a absorver tudo: a razão que me gere os dias, mas também a emoção que vem do riso, do olhar, mas também a inteligência emocional que vem da forma como dois corpos se movem: sim, porque há tanta inteligência em dois corpos que se querem. sem esses limites, sei que amo com a alma, e já não com o coração. porque o coração apaixona-me, mas a alma entrega-me. o coração aquece-me, mas a alma preenche-me. o coração sossega num abraço - a alma só respira no abraço.
pura alegria é quando se descobre uma alma assim, igual - mas também uma inteligência assim, igual. aí, sabemos que subimos ao degrau mais alto: o nosso - a dois. quando de repente, aquela sensação que tudo é maior do que alguma vez imaginamos ser possível, aquela sensação do vazio de palavras suficientemente intensas, quando queremos dizer algo e a garganta fica presa.. por isso aquele nosso suspiro único, mudo, entre risos e lágrimas, quando loucos, mandamos à merda a razão e o coração, e nos sentimos finalmente livres para sermos um do outro. at last..

:: Ti' Aristides

fevereiro 17, 2014


o ti'Aristides era o homem mais charmoso da rua de baixo. casanova reformado, sempre de fato, o chapéu azevedo na cabeça, e o jornal do dia debaixo do braço, enquanto exibia com orgulho o seu calhambeque preto, com os cromados de brilho inatacável. o ti'Aristides era um daqueles marialvas puros, a espalhar simpatia e classe, com aquela serenidade de quem já viveu uma vida que dava um filme: estudou demoradamente em Coimbra, famoso pelas suas serenatas, os seus mil romances e a poesia que declamava num canto secreto do Jardim da Sereia. mais tarde emigrou para Porto Amélia, em Moçambique, onde foi secretário-geral da Câmara da Beira. um dia, reformou-se e voltou para a pequena aldeia, junto dos sete irmãos, acompanhado da paixão da sua vida, mas sempre com aquele toque doce de bon vivant eterno.

não sei se pelo meu riso safado, se pelas bochechas gordas, ou por ser uma criança dada a carros e motas, um dos passatempos do ti'Aristides era passar à porta de minha casa, apitar o calhambeque e levar-me nos seus passeios até à vila. lembro-me de como me inchava o peito quando entrava para o estofo de cabedal preto, a porta que abria ao contrário, e ficava ali, do alto do calhambeque, a ver a estrada, a ouvir a cassete do roberto carlos, e a comer os rebuçados do saco de papel. não me lembro do que falávamos, mas não devia ser coisa boa. aliás, ficou famosa a história da namorada que o ti'Aristides me arranjou: a Carla, a vizinha da casa da frente, que me destroçou o coração, quando partiu para 'a França', quando eu tinha 4 anos.. claro está que eu, romântico precoce, consegui eternizar a namoradinha, quando convenci os meus pais a darem o nome dela à minha irmã. e a Carla assim ficou para a vida na família.

o ti'Aristides partiu cedo e penso que nem me soube despedir dele. mas lá no fundo, acho que ele nunca se despediu de mim. raio do homem encarnou numa das minhas costelas. deu-me este fogo de viver de coração aberto, e aproveitar cada raio de sol com a alegria tonta de quem vive, não para o prazer, mas pelo prazer. esta fixação pelo antigo (retro, diz-se agora), pelo preto e vermelho, esta fixação pela conquista da beleza feminina e pela boa vida. esta paixão e capacidade de entrega aos que amo, sem olhar a meios ou receios.. obrigado, meu Tio!!

ps: há pouco tempo descobri que o calhambeque do ti'Arstides ainda existe. estava a servir numa empresa de eventos: transportava os noivos.. só podia - eterno romântico. mas disse bem, estava. porque em breve, vai voltar ao seu justo herdeiro: eu. 
e já sonho com o dia em que vou levar o meu broto a passear até a vila, com a cassete do roberto carlos e uns rebuçados no saco de papel..

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