:: clínico geral

julho 24, 2014



'temo o homem de um livro só'
_Tomás de Aquino


o doutor Rui é o meu médico. será sempre. esteja longe ou perto, ele sabe sempre o melhor para mim, nem que seja numa consulta por telefone - e já foram tantas. porque é bom especialista? não, pelo contrário, porque não tendo nenhuma especialidade - é clínico geral-, sabe de tudo mais que ninguém. médico do corpo, mas também da alma, da vida, do trabalho, da família. depois, também é filósofo, é pintor, foi político - dos bons -, já tentou ser mecânico, engenheiro, e aposto que deve ter sido o arquitecto lá de casa. além disso, sabe falar sempre com aquele bom humor de quem leva, mesmo nos dias maus, uma vida boa. mistura fina de intelectual e homem da aldeia, salta do mais profundo dos pensamentos para uma caralhada inesperada, da mais sentimental das frases, para uma piada das inteligentes: daquelas que são um gozo bom com quem gostamos - as que nos fazem rir de nós próprios.

o doutor Rui é um dos meus ídolos. daqueles que olhamos com admiração desde pequenos e que, um dia, sonhamos ser iguais. acima de tudo porque ele é um homem de vários livros, de várias culturas, de várias fontes. espécie em vias de extinção! sim, porque nesta era da super-especialização só vejo pessoas a afunilar o caminho: vão por ali, com umas palas, e dali não saem. e não estou a falar só de trabalho. de tudo: percebem de vinhos, mas nada sabem de música. declamam poesia, mas não conseguem soltar um riso. dissertam sobre economia, mas não sabem abrir a porta a uma mulher. são apaixonados, mas não sabem ser safados. são divertidos, mas não sabem ser irónicos. e que diferença faz. o problema é que a maioria faltou ao livro que diferencia: o da inteligência emocional - onde se aprende aquela coisa 'simples' de saber apreciar a vida. em todas as suas facetas, em todas as suas possibilidades. aquela coisa de saber viver com emoção. saber dar, saber receber, saber perceber o outro. saber entender (e apreciar) cada detalhe.

somos a soma do que vivemos. dos vários caminhos que percorremos. por isso quanto mais especialidades se espreitou, mais se cresceu. o teste do algodão é a música: quem apenas gosta de um estilo, de uma certa década, de um certo funil estreito, é sinal que não tem a mente aberta, atenta, curiosa. quem não vai das músicas dos avós à musica dos filhos, é porque se perdeu algures num momento da vida. e ali ficou preso. pode-se viver bem assim? claro, não se pode é viver tanto.
por isso, hoje, já a caminhar para os 40, sou um gajo feliz por ter sabido ler os livros certos, na altura certa. hoje sei o que sou: um clinico geral da vida. daqueles que vivem desenfreadamente todas as possibilidades que o destino lhes dá. ou, pelo menos, todas as que quero viver. sério no trabalho, sou uma criança nas brincadeiras. amigo do amigo, interessa-me a alma - e o riso - dos que me rodeiam. mais que louco apaixonado, sou um safado bom. mais que amar, cuido. mais que ler, escrevo. mais que ouvir, vibro com a música que descubro. mais que ver, tenho prazer no que olho: uma paisagem, um objecto. um corpo. mais do que saborear, lambuzo-me. mais do que ser, sozinho, entrego-me a com quem sou, junto. e vive-se bem assim? vive-se mais assim..

:: chan chan

julho 23, 2014



um dia destes perguntavam-me se tinha algum abismo pelo "difícil": porque raio escolhes o caminho mais complicado, se sabes que há por aí outros caminhos mais simples? e hoje, olhei para estes senhores e acho que consigo explicar o porquê. a vida destes homens deu um filme. porque cantavam bem? sim.. mas não só. porque tinham uma pinta descomunal, entre o charme casanova e a doçura de um poeta safado? sim.. mas não só. porque cantavam com aquela voz lá do fundo da alma, naquela mistura que só se vive no calor dos trópicos? sim.. mas não só. a vida deles deu um filme, porque contra todas as dificuldades, eles venceram. porque caíram, mas levantaram-se. porque deu luta, mas ganharam. tiveram um anjo que os ajudou (o ry cooder) - há sempre um anjo -, mas foi a predisposição para correr o risco, foi a coragem para acreditar no destino, que lhes deu alma. e deu um filme, porque mesmo quando já poucos sequer pensam em viver, estes velhotes cheios de ganas, souberam viver de novo, a nova oportunidade que o destino lhes deu. era mais fácil ficarem parados? era, mas não ia saber tão bem.

pois, tal como esta história, com a vida fui aprendendo que nem tudo o que parece fácil é o melhor. ou sabe melhor. na profissão, nos amigos, nos amores, tudo o que é fácil nunca tem o mesmo sabor. no trabalho, são os projectos difíceis que dão luta. os já ganhos à partida nem lhes ligamos. como até no futebol: o Benfica este ano ganhou tudo. mas foi só por tudo o que se passou o ano passado (em que se perdeu tudo), que a loucura foi enorme. em todos os pequenos detalhes da vida, tudo o que obrigou a um esforço maior, tem mais valor. porque vale não só pelo que é, mas também pelo que foi necessário lutar para ser. por isso, acredito que algures onde se escreve o destino, se colocam dificuldades quase de propósito, para testar a fibra, o valor, a força dos que se querem. que no caminho da felicidade há sempre umas barreiras pré-teste, tipo: "ai acham que se gostam que nem loucos? então superem lá isto!! mostrem lá o que valem!".

e a vida tem nos testado muito a coragem. apertou-nos desde o primeiro dia. a vida, essa puta, só nos criou dificuldades, entraves, barreiras. o rio ia para um lado, e tivemos de remar contra a corrente, convencê-lo a mudar de sentido. tivemos de construir o barco, madeira a madeira, em cima dos rápidos, sempre a escorregar. andamos a remar separados tanto tempo, meio perdidos na corrente, a ir contra as árvores da margem, a bater nas pedras. a precisar de ir, para voltar. a precisar de cair dentro de água, para saber o que era a falta de ar - do outro. mas se fosse um rio calmo, não era o nosso rio. se não tivesse corrente, podíamos boiar, ficar parados no barco, apenas a apanhar o sol, mas esse não é o nosso rio. o nosso tem rápidos a toda a hora, tem gritos, tem risos, tem curvas loucas cheias de troncos selvagens, tem família tonta a gritar por nós nas margens, a lançar-nos a corda sempre que precisamos. o nosso rio tem cada dia mais força, é cada dia mais fundo, sem pé. é perigoso. mas só assim tem aquela água transparente, cheia de corrente, com sabor a fresco: água pura. rio difícil? sim, mas (também) por isso tão único.

:: oh, something quiet now

julho 22, 2014


oh something's quiet now.. is it inside my head?
as we're looking at the mirror together something's quiet now..

não há nada mais puro e sincero, que o teu olhar quando aprecias a vista do parapeito da janela, durante o cigarro. um respirar silencioso, um vazio preenchido, peito cheio. não há nada mais puro e sincero que ficar ali apenas a adivinhar o que te vai no pensamento, a percorrer a tua alma, as linhas do corpo que ainda pouco antes fora meu. sentir-te ainda no meu corpo. não há nada mais puro e sincero que respirar ao ritmo lento do fumo do cigarro. que em silêncio sai dos teus lábios. um silêncio de palavras que não se precisam dizer, mas que ecoam mudas pelo quarto. não há nada mais puro e sincero que deixar-me ficar deitado na cama, a um metro de ti, a contemplar as tuas formas sentada no parapeito, as tuas pernas longas a fecharem a curva do teu tronco, e o teu queixo levantado enquanto olhas a rua lá em baixo. não há nada mais puro e sincero que o teu olhar no meu, o teu rosto que se veste de ternura sem falar, apenas com uma pequena rotação no pescoço, um esgar do lábio e um brilho de lágrima..

e levantar-me, abraçar-te de lado, por cima da camisa que vestes, puxar da manta, agasalhar-te, aquecer-te os ombros enquanto acabas o cigarro. sempre em silêncio, devagar, como o respirar. e dizer-te baixo, ao ouvido, com o queixo descansado no teu pescoço: amo'te.
não há nada mais puro. e sincero.

:: procuram-se!

julho 20, 2014



procuram-se:
mulheres divertidas, simpáticas, bem dispostas, de bem com a vida e com a noite. soltas, leves, descontraídas, desportistas qb, que falem o suficiente para interessar, mas não tanto que dispensar. que saibam ter sempre um ponto de sensualidade e um ponto de fragilidade. que não vivam no pedestal, mas não que seja necessário - de todo - puxá-las para cima a toda a hora.

com a sua profissão bem arrumada, que lhe dê independência, mas também uma certa ocupação. em que o relógio seja uma coisa pouco importante, e dispensável sempre que justificável. mas que precisem de algum tempo só para elas. que leiam, discutam, argumentem, apreciem e filosofem, mas que se riam disso tudo no fim. especialmente delas próprias.

que tenham um bom gosto pelo menos tão bonito como elas, que saibam ser discretas, mas que encham uma sala com o seu riso. que tenham uma pele brilhante e suave, mas a força selvagem nos gritos, nos gestos e no amor - o físico. que gostem do mar, da lua cheia, de caminhar sem destino, mas com muito de sal e pouco de doce. com a dose certa de loucura, mas com a certeza da frontalidade, sinceridade e carinho pelo próximo (eu, pois claro).

que saibam ser poéticas ao gritar golo e fashionistas a cozinhar o jantar. que sejam as melhores amigas das minhas amigas. que façam festas todos os dias, mas sosseguem no silêncio do olhar. que escrevam com o coração na boca e falem com a alma nos olhos. que se divirtam com a prosa, que sejam britânicas no humor, italianas na postura, espanholas na fala, e francesas no quarto..
mas principalmente, que sejam - ainda - mais bonitas ao acordar que ao deitar..

:: a sedução da pele

junho 16, 2014


gosto de ver pele. deve por isso que gosto mais do verão, ou de quem vive o ano todo como se fosse verão. gosto das pessoas que mostram sempre pele: um ombro descoberto, uma cintura que não se tapa, um braço com uma manga larga. umas pernas que se exibem nuns calções curtos. ou subtileza, um pé que se mostra no sapato semi-aberto. sim, porque um bom sapato tem sempre que mostrar qualquer coisa de pé. a primeira regra de sensualidade deve ser mesmo esse detalhe milagroso de saber mostrar a pele: de forma discreta, mas segura. que acenda o desejo, mas que não o torne vulgar. que faça um olhar rodar, mas que deixe a dúvida do que está depois. que faça mais do que querer, desejar. porque seduzir é isso: despertar o desejo no outro.

gosto de tocar a pele. passar a mão devagar, poro a poro, quase como se fosse um mapa que se lê com os dedos. como se fosse um instrumento de música, que se toca em cada bocado de pele. e o som sai na respiração de quem tocamos: às vezes mais sossegada, outras vezes mais acelerada. umas vezes mais demorada, outras vezes quase gemido. tocar a pele exige ainda ritmo. mudanças de ritmo. mais lento onde o corpo acalma. mais intenso onde o corpo desperta. e pausas. quando o corpo fica à espera, suspenso, do próximo toque que se demora. momento de intimidade perfeita, quando se toca a pele de quem se ama: com o respeito - e cuidado - de quem tem nas mãos o maior tesouro da vida. passar, devagar, todo o corpo dedo a dedo, deslizar como se fosse um lenço de seda, mas com o toque de uma pedra quente. e atrás levar a boca. que beija, que trinca. que brinca.

por isso gosto de te beijar a pele. porque depois do toque, tem de aparecer sempre os lábios. que te arrepiam o nervo, que te humedecem os poros. deixar a boca tocar, e os dentes soltarem um arrepio frio. sempre na pele. e sempre com ritmo. acelerar. travar. e num jeito safado, brincar às escondidas: quando ficas com aquela dúvida de onde vai ser o próximo beijo. quando o teu corpo se contorce só com a possibilidade do beijo, ainda antes de os lábios sequer te tocarem. mas mais intenso, gosto de te beijar a pele depois de. naquele momento em que todos os sentidos ainda estão perdidos entre o que se gritou, e, quase em câmera lenta, apenas se beija um ombro. ou um olho fechado. ou apenas os lábios da outra boca. aquele toque de pele, íntimo, próximo, seguro. de quem sussurra um segredo enquanto te percorre: o meu mundo é na tua pele. a minha casa é no teu corpo.

:: 'sozinho', não 'só'

junho 10, 2014



por muito que pareçam similares, "estar só", e "estar sozinho", são quase opostos.
quando se está só, sente-se uma tristeza imensa, uma falta de alguém que seja a nossa procura, o nosso objectivo de vida: uma amizade, um amor, ou uma família. quando se está só, pode-se viver o mais bonito dos momentos e continuamos a sentir o vazio de não ter alguém que, longe ou perto, presente ou ausente, seja a pessoa que gostávamos de partilhar aquele bocado de vida.
estar sozinho é diferente - porque é um estado de alma transitório. é quando se passam aqueles momentos apenas connosco, entre o jantar de amigos de ontem e o beijo de amor de amanhã. quando se está sozinho, especialmente quando é por opção própria, sente-se um alivio imenso de poder fazer o que se quer, como se quer, quando se quer, porque haverá sempre alguém que nos acompanha. para quem "está - apenas temporariamente - sozinho", mesmo no meio do vazio, sentimo-nos completos, realizados na forma como vivemos, como partilhamos, mesmo no silêncio.

na correria dos dias e das agendas cheias, pode-se disfarçar a falta do que queremos: entre risos e abraços amigos, tudo parece menos menos urgente. mas também é aí que realmente damos valor ao que precisamos. porque não é de um abraço, é daquele abraço. porque não é de quem nos faça rir, é daquele riso que é igual ao nosso. não é de um beijo de carinho, é daquele beijo em que se sente o ar a fugir. a certeza de uma paixão maior, é quando nos sentimos sozinhos, mesmo no meio dos nossos. é aí, que percebemos que a vida só faz sentido ao lado de quem amamos. que cada alegria vivida com os outros, é sempre incompleta, pela falta de partilha da nossa outra metade. confusa esta coisa de viver: quando se está longe de quem queremos, sentimo-nos sozinhos no meio dos amigos, mas completos nos momentos de solidão..

engraçado é ver como a sociedade estranha ver alguém sozinho: "vem mais alguém para o almoço? está acompanhado? aguarda por alguém?" - como se uma pessoa não pudesse, sozinha, desfrutar de cada momento de uma forma positiva. por necessidades do destino, e por vontade própria, tenho passado muitos dias sozinho. porque às vezes sabe bem ir aquela esplanada apenas comigo, passar o dia naquela piscina apenas a ler, a ouvir música. ver aquele pôr-do-sol em silêncio - a ouvir-me no silêncio. ou como ontem, ali a ver aquele concerto, apenas eu, sozinho na cadeira, mas tão completo em cada música, em cada lágrima, misto de emoção do momento, e da falta de quem se queria ali. porque quando se está sozinho (e não "só"), há sempre alguém que nos acompanha onde é mais importante: cá dentro.

:: os bons dias maus

maio 21, 2014


há dias em que nada sai certo. o trabalho complica-se, as palavras são mal entendidas, os horários desencontram-se, a bateria do telefone acaba antes de tempo, o trânsito da nossa fila é sempre o mais lento, e até a merda da caixa do supermercado é a única que não avança. há dias assim, em que tudo o que fazemos vai correr da forma mais complicada possível. nestes dias só queremos que eles acabem depressa, que possamos enterrar a cabeça no sofá, fechar os olhos e acordar no dia seguinte. com reboot completo e karma renovado.

quando duas pessoas decidem viver juntas estes dias são os mais importantes. porque superá-los é a maior forma de perceber o valor de estar junto. aliás, tenho para mim que estes dias são bons. são os bons dias maus. porquê? porque quando se ama, vivemos sempre dentro de uma panela de pressão. não há solução: quando se quer alguém a sério, a vontade de estar sempre junto, o desejo de estar sempre abraçado, gera sempre a pressão da ausência. mais a pressão dos contextos que atrapalham, mais a pressão da família que sempre complica um pouco, mesmo quando só nos quer bem. e tal como nas panelas de pressão, os dias maus são o pipo que faz sair a pressão. nestes dias, dizem-se as maiores asneiras, as palavras mais erradas, implicamos só porque sim, rabujamos só porque não. somos tal e qual um pipo - a apitar, a fumegar, e a rodar desenfreadamente. mas com a função certa: aliviar a pressão.

por isso, mesmo que hajam conversas cansativas pelo meio, falhas de comunicação, berros mimados ou olhares entristecidos, quando se chega ao fim de um dia destes e conseguimos despedir com aquele abraço bom, um beijo mais sentido e um amo-te na boca, então foi definitivamente um bom dia mau. porque sem danos, aliviou-se a pressão, pôs-se cá fora alguns receios, e aquelas questões simples, mas que andavam embrulhadas. nestes dias, garante-se que se mantêm a pressão na medida certa da receita. e esse será sempre o segredo: saber manter os ingredientes quentes e saborosos, na forma como eles se equilibram. dá que pensar, como as gerações mais antigas se prepararam bem melhor para gerir esta pressão. se calhar, porque tinham menos bimbys maricas, e mais panelas pesadas, feias, de apito estridente, mas duras como o aço..
bom mesmo, é quando quem nos atura, percebe o nosso nível de pressão, e mesmo que discorde das razões, reage. e age. e com um pequeno gesto, uma presença inesperada, um abraço mais demorado, ou um simples olhar, alivia o lume e acalma o apito descontrolado. obrigado, a ti, por teres feito bom, o dia mau de ontem..

:: incendeias'me

maio 20, 2014



há uma frase, daquelas de filosofia de cabeceira, que sempre achei piada: 'a distância para o amor, é como o vento para um fogo: apaga os fracos, incendeia os fortes!'.. e às vezes é preciso viver as coisas na pele para as sentir de verdade. para as testar. como quando parti e te deixei para trás. acredita, que assim que virei a esquina da manga de embarque rebentei em choro, com todas aquelas lágrimas que não quis deixar sair à tua frente. lágrimas já de saudades, de medo de nos perder, de medo de não conseguir aguentar. medo que o vento fosse mais forte do que tudo o que já construímos, do que as certezas que vemos no outro, do que a família que já é nossa. medo de ferir de morte a nossa alma. sim, porque somos só uma: alma junta, gémea, igual. mas não imortal..

e sim, os primeiros dias foram um sufoco. o vento deu forte, e a chama a aguentar, mas a queimar a toda a hora. a queimar a pele com falta do teu toque, a queimar o olhar com a falta do teu riso, a queimar cá dentro, bem lá fundo. juro que me apanhei várias vezes a apertar o peito, como se aliviasse uma dor qualquer que estava cá dentro, não sei onde, mas sei porquê. agarrei-me a tudo o que tinha, fiquei horas a falar só contigo mesmo sem me ouvires. a ser tua, mesmo sem saberes. a ver as nossas fotos, a sentir o teu abraço em tanta mensagem escrita, a rir com o teu sorriso nos mil vídeos, a ouvir-te nas nossas músicas, a cheirar-te na roupa que trouxe ainda vestida de ti. quando estou ali, em silêncio, juro que te ouço. ouço teu o riso solto quando digo tolices, ouço o teu fodasse quando te chateias com o meu berro brusco, ouço o teu gemido calmo quando me massajas a pele, ouço o teu respirar de sossego, quando adormeço no teu peito. ali, mesmo sozinha, sei que estou contigo, no melhor que temos: o nosso mundo, cada dia mais nosso..

e com o calor, o vento veio mais forte ainda e incendiou-me de vez. veio a certeza que não quero perder um milímetro de todo o terreno que já ganhamos ao mundo. que não posso deixar que nada se ponha no meio do mais bonito que o destino me deu: o nosso amor. com a chama a estoirar, veio a certeza que é ao teu lado que sou mais inteira, mais feliz, mais mulher. e até mais mãe. e depois tu. sempre dessa forma louca de me amares, de me dares tudo: compreensão, carinho e tanta paciência. incrível, ver-te forte desse lado, ver-te mais certo, a tentar sorrir - mesmo a saber que me escondias a tristeza que te consumia. ver-te, num passo tão rápido a quereres o futuro, a construíres o futuro - às vezes mesmo mais rápido do que eu sequer o penso. ver-te já aqui, a tratares da nossa vida, tão incrivelmente decidido. como foste decidido desde o dia em que te conheci. no dia em que disseste ao ouvido de quem nos apresentou: 'esta miúda vai marcar a minha vida'. há momentos assim, quase premonição, e nessa acertaste tanto. voltaste a dizê-lo, nos meus olhos, um dia já de madrugada. quando o sol acordou no meu corpo despido nos teus braços. acho que foi aí, naquele sol quente da primeira manhã, que me incendiaste na pele este fogo bonito. este fogo, cada dia mais forte.
sempre, cada dia mais..

:: o silêncio

maio 19, 2014



o silêncio é um dos maiores privilégios que temos. e, curiosamente, a maioria das pessoas evita-o a todo o custo. nunca percebi porquê. para mim, é no silêncio que nos encontramos: quando todo o ruído baixa, quando ficamos sós, apenas com o que ouvimos cá dentro, entre a cabeça e a alma. sozinhos ou acompanhados, é no silêncio que se chega ao estado puro. por isso, quem foge do silêncio apenas foge de si próprio. eu, todos os dias preciso do meu silêncio: no primeiro banho do dia, no café da manhã - com o vício bom que ganhei, de pousar lentamente a chávena no meio dos pés, quase yoga -, a meio do dia, enquanto leio o jornal, ou ao fim do dia, ainda no trânsito, quando o silêncio dentro do carro se contrapõe ao barulho lá fora. ou apenas quando chego a casa, e volto ao canto do café. eu, e a minha chávena, apenas. em silêncio. porque, como nesta música, às vezes é preciso tirar os instrumentos, os sons a mais, para poder ouvir o conteúdo. na vida também é assim. só quando paramos, em silêncio, temos espaço para ver o essencial: apenas a letra - a história, os gestos. as atitudes.

quando se está com quem se quer também tem de haver silêncios. são mais que necessário. para ouvir, junto, para além do ruído dos dias. os famosos silêncios incómodos são apenas o maior sinal que algo vai mal. porque o silêncio, quando é bem resolvido, é sempre bom. como quando vais ali ao lado no carro e apenas me olhas, pousas a tua mão na minha perna, e te ris em silêncio. ou no escritório, quando paras um segundo o teu trabalho e me olhas no meu. e apenas te ris. ou no meio da rua de calçada, quando te deixas cair no meus braços a olhar o céu da noite, e apenas apontas para a lua - e não precisas dizer mais nada. ou quando finalmente sossegas no nosso quarto, aninhada em mim, e apenas respiras fundo. em silêncio.

e depois há o silêncio do mundo. quando ficamos a sós - sozinhos. naquelas horas em que acordamos a meio da noite e já não há ninguém acordado, nem música, nem carros na rua. aquelas horas que já são tarde para telefonar, para mandar uma mensagem, para comunicar. como ontem, quando acordei de um sonho bom. tão bom, que não quis adormecer logo. soube bem sair de casa, dar uma caminhada à volta do bairro, e continuar a viver o sonho. sentir o cheiro das arvores à noite, a brisa morna no chão, ainda molhado da chuva de há pouco. e naquele silêncio, poder continuar a ouvir-te a sorrir no sonho. e ouvir a M., bonita, aos pulos, a correr para os teus braços. andei por ali, a divagar - devagar - sobre a relva, e a continuar a ver-nos. estávamos deitados ao sol, no jardim grande. os três, embrulhados. abraçados. ficamos ali horas: ela no meio de nós, adormecida, e tu do outro lado, com aquele teu olhar de orgulho no meu. a rir. em silêncio.    

:: happy sadness

maio 06, 2014



é só nos dias em que alma entristece, que se percebe o quanto se é feliz.
porque, se por momentos sentimos a angústia de não ter tudo, na reacção seguinte - inconsciente -, algo em nós faz um apanhado, tipo trailler, das coisas boas e lembra-nos o quanto temos de feliz. estar triste e entristecer podem até parecer a mesma coisa. mas não o são. o problema quando se está triste, é que este momento de reacção não acontece. é permanente essa lamentação. para os que apenas entristecem, basta deixar que a música avance, que a dança continue, que o sorriso chegue no momento a seguir. pode-se chorar. deve-se. porque limpa a alma dos resíduos que nos pesam. mas com essa certeza: só quem é feliz pode entristecer. é como um pôr-do-sol. só quem o vê é que pode sentir aquele momento de foi-tão-bonito /mas-já-acabou /amanhã-há-mais /mas-eu-queria-já-hoje..

e já agora outra suspeita: que não há problema em entristecer. a vida não é um oásis. aliás, só o é para os que se acomodam. para os inconformados, para os que querem sempre mais, há uma constante angústia - boa -, de não ter o suficiente. e não tem a ver com ambição desmesurada, mas sim com a superação permanente das fronteiras do que conhecemos. quando se vive no limite - da alegria, do amor, do trabalho-, descobre-se todos os dias que há novos patamares. como quando se chega ao topo da montanha e se vê outro pico mais alto, na montanha a seguir. claro que pelo meio há um vale.. mas ninguém disse que ia ser fácil. quando se vive assim, sempre que se passa para o limite seguinte, têm-se aqueles momentos de insatisfação, quase paradoxo: 'estou tão bem, mas afinal ainda posso viver mais'. é por isso que nos dias a seguir a uma grande alegria, se sente aquela estranha angústia.. boa.

quando se quer alguém no limite, quando se ama no tutano do osso, tem de haver sempre essa insatisfação de precisar sempre mais. tem de haver aquela loucura de ter saudades vinte minutos depois de te deixar: porque estar ao teu lado é o meu lugar natural. tem de haver o vício de estar sempre ao telefone contigo: porque o que nos liga é demasiado bom para não ser permanente. tem de haver a imaginação para criar, em cada dia, mais um nível de intimidade, de carinho, de prazer: porque o que sentimos nunca cabe apenas no que já vivemos até hoje.
a diferença é quando se tem a alma gémea ao nosso lado temos um sossego único: a viajem da procura acabou. porque não se quer mais pessoas, nem mais coisas - quer-se apenas viver mais, com a pessoa com que se está..

:: gravado em ti

maio 06, 2014



nunca gostei do anel que marido e mulher usam. porque tem pouco de pessoal, tem pouco de história, de amor. porque tem muito mais de posse, de padrão, de obrigação: porque todos usam no mesmo dedo, no mesmo formato, e para todos, significa o mesmo. e eu não gosto de coisas padrão. por isso prefiro, muito mais, todos os anéis, fios, pulseiras que tem uma história própria, um significado seu. que são usados não porque sim, mas porque apetece naquele dia, naquela hora. não porque estão sempre lá - mas porque estão sempre a ser lembrados de se porem lá. bonito quando alguém usa um fio porque acordou a pensar no que ele significa. bonito quando alguém usa uma pulseira apenas porque lhe apetece beijá-la no pulso durante o dia. porque ai sabemos que estamos ali, não por hábito, mas por uma vontade idiota, quase infantil -mas pura-, de estar junto.

por isso, quando dou ou recebo um fio, uma pulseira, um anel, tenho sempre de lhe registar o motivo. a razão. pode ser o mesmo anel, lindo, brilhante, valioso, mas sem aquela data gravada por dentro, vale metade. não de valor material, mas do outro, o que interessa: o valor do que se sente, não do que se tem. importante saber o que se escreve, o que se grava. não precisamos ser óbvios, nem exibicionistas, nem descritivos demais. não, porque são apenas sinais que se deixam. uma letra, um número, um abreviatura. algo que seja tão obviamente simples, não para quem lê, mas para quem sabe o que ali está. aquele fio, podia ser igualmente bonito no pescoço de quem gostamos, mas sem aquelas pequenas medalhas com as iniciais discretas da família, nada valia. a pulseira que trago no pulso, até pode não ter estilo (que tem), até pode não ficar bem na formalidade do fato de trabalho, mas que interessa isso, se tem gravada nela o dia mais importante da minha vida..

porque não há nada mais doce que vermos alguém a vestir a nossa história. quando alguém chega ao pé de nós, e de repente, quando tocamos a mão, sentimos aquele anel no dedo menos óbvio. quando duas amigas se encontram ao fim de uns meses, e sem combinarem levam a mesma pulseira que um dia gravaram juntas. quando alguém, no meio de um almoço deixa cair o fio para fora da blusa e trocam-se dois risos tontos, apenas de quem sabe o que ele significa. como naquele dia, em que me mandaste uma foto em lágrimas, a beijar as medalhas do teu fio. e sem falares, sem me dizeres nada, fizeste a mais bonita declaração de amor. porque não beijaste apenas um fio, beijaste toda a história que ele tem. ali, naquele fio nosso, sei que vou contigo para o todo o lado. não no teu dedo, não no teu pescoço, mas onde fico mais homem: gravado em ti..

:: o tempo

abril 30, 2014



o tempo - as horas, os dias - é a maior marca do que se gosta. quando duas pessoas se querem de verdade, sejam amigos, amantes ou irmãos, o tempo é sempre pouco quando estão juntos. ou passa sempre depressa demais. ou nunca chega para todas as conversas. nunca dá para todas as histórias que se querem contar, para todas as músicas que se querem ouvir. uma merda, ainda agora ali chegamos e já temos de ir. mas sabe bem sentir que o tempo passa a correr, que já temos tanta coisa para falar no próximo encontro, no próximo telefonema. porque neste, já não deu. as pessoas que contam são aquelas em que o tempo nunca chega para dizer tudo, fazer tudo, partilhar tudo. são aquelas em que o tempo sabe sempre a pouco.. e por isso, sabe a tanto.

o tempo - as semanas, os meses - é também o teste do algodão. tudo o que é verdadeiramente bom, não de esvai com o tempo, não fica menos forte, não se gasta. pelo contrário, tudo o que nos faz bem, tudo o que nos faz melhores pessoas, fica sempre maior com o tempo. sim, maior. porque uma amizade a sério, não é aquela que apenas dura para sempre - é aquela que cada dia é mais próxima. porque uma paixão louca não é aquela que apenas dura muito - é aquela que cada dia nos rouba mais lucidez. porque um amor de verdade não é aquele que nos preenche todos os dias - é aquele em que todos os dias são poucos para o viver. como quando se chega ao fim do almoço e telefonam do escritório para a reunião - já? sim..já. ou quando se chega ao fim da tarde, daquelas em que apenas se namorou, e se apanha o susto no relógio: jáá?!?!! sim..já. ou quando se chega ao fim de uma noite junto e, de repente, é já de manhã..

o tempo - o nosso - deve ter o contador avariado. só pode. estragou ali qualquer coisa no relógio. quando estamos juntos passa depressa demais. quanto estamos longe, não passa. tantas, o número de vezes que olho para o telefone a pensar que já não falo contigo há horas.. e afinal foi há 10 minutos. tantas, o número de vezes que falamos de coisas de há muito tempo.. que afinal, foram há dois dias. o nosso tempo é vivido noutra escala, noutro ritmo. porque tudo é mais intenso, mais preenchido, mais forte. mais louco. mas amar é isso: é termos aquela magia de conseguir viver num minuto - juntos -, bem mais do que se vive numa hora - separados. aquela sensação que esticamos o dia, como se o tempo fosse um elástico, que puxamos sempre mais um bocado, e em que cabe sempre mais um riso, mais um beijo, mais uma palavra tonta. único no nosso tempo é saber que, mesmo sem nunca o termos tido só nosso, já fizemos em meses, mais do que a vida nos deu em anos. por isso, sei bem qual é o meu 'paraíso na terra'. simples, é o sitio mais bonito que conheço: é ter todo o teu tempo.. ao meu lado.

:: família cuya

abril 17, 2014



família é uma palavra bonita demais, a que tantas vezes não damos o devido respeito. nem valor. porque deve ser o maior elogio que alguém nos pode dar: chamar-nos família.
a primeira família que temos, a de sangue, como se costuma dizer não se escolhe. não se encontra. e por isso é tão especial, porque somos sangue do mesmo sangue, gene do mesmo gene, porque nascemos juntos, somos o nosso clã: aqueles que serão os nossos para sempre. mas depois existe a família que vai crescendo ao longo da vida, não pelos laços de sangue ou parentesco, mas pelos amigos que viraram primos, tios, manos e manitas. sim, porque aos amigos que são mais, dá-se um nome de família. são meus amigos? não, são minha família..

a diferença da família para os amigos é a presença. os amigos vão e vem. estão mais próximos ou mais longe. a família não está, é! a família nunca fica longe, fica apenas mais calada. os amigos chateiam-se, a família entende. os amigos cobram quando não telefonamos. a família telefona. os amigos não sabem quando são os momentos importantes da vida. a família aparece sempre sem precisar de aviso: lá de trás da porta, da casa ao lado, do outro lado do mundo, mas aparece sempre. e continuam as mesmas conversas de sempre como se fossem ontem. os amigos combinam para se encontrar. a família bate-nos a porta. aliás, a família entra pela porta mesmo sem bater, porque tem a chave de casa. aos amigos dizemos que gostamos. à família dizemos que os amamos. dos amigos sentimos saudades. da família sentimos a falta. os amigos enchem-nos os dias de coisas boas. a família enche-nos a vida de coisas boas.

como ontem, quando um dia difícil se meteu no meio de nós, apertou-nos o coração, quebrou-nos as forças. dia de merda, deixou-nos os olhos em lágrimas. mas o dia, mesmo duro - muito duro -, foi mais fácil porque a família estava lá. e nem foi preciso combinar: foram aparecendo, almoçou-se, conversou-se, fez-se companhia, bebeu-se uma verde, amparou-se os abraços, e os braços. e juntos, fomos família pela primeira vez num dia difícil. e juro que se cantou noite dentro:
"- esse coração assim desagasalhado, vais sair assim?
não, não vais. saíste com um riso, mesmo no meio das lágrimas, deixaste a janela do sorriso aberta, coisa boa, coisa desperta. e olha: deixa-te de complicação, liberta a alma dessa prisão, deixa-te guiar pelo coração. porque há um bom feeling dentro de ti. um bom feeling dentro de nós, familia cuya.."

:: o rimmel, apenas

março 19, 2014


Eugène Rimmel (1820) nasceu em França e cedo emigrou para Londres onde ajudou o pai na perfumaria da família. apaixonado pelas actrizes de teatro inglesas, criou vários produtos de beleza para elas, sendo considerado como o pai da cosmética feminina - e o rimmel o seu produto mais famoso. assim, com um bocado de história, tenho ainda mais certeza que o rimmel é definitivamente "o" cosmético. confesso que tudo resto para mim já é adereço: batons, bases, blushs, máscaras -whatever-, já são demais. um rosto feminino tem de valer por si, pelo seu brilho, pela alegria - ou melancolia -, mas sempre pelo que transmite. e o rimmel é o único cosmético que não disfarça, não engana, não troca o tom. simplesmente destaca o essencial de um rosto: o olhar.

o raio do rimmel, invenção perfeita, tem uma qualidade única: é multifacetado. é o equivalente a um blusão de cabedal preto no roupeiro de um homem: dá com tudo. uma mulher pode estar mais desportiva, mais discreta ou mais efusiva, com cabelo despenteado ou na perfeição de um jantar de gala, que o rimmel fica sempre bem, complementa sempre. mesmo discreto, no meio de todos os outros cosméticos, marca sempre! mas uma mulher que usa rimmel, apenas, prende-me definitivamente a atenção. porque implica uma mistura de confiança e transparência, de certeza em si: na personalidade do rosto e na profundidade do olhar. beleza pura.

o rimmel tem ainda uma diferença que o torna invejável: é o único cosmético que fica bonito quando esborrata. uma mulher que chorou, por dor, por alegria, ou apenas por desabafo, e que esborratou o rimmel, fica ainda mais bonita. quando aqueles traços a preto no rosto mostram as marcas do choro, do sentimento que saiu na forma mais sincera: uma lágrima.
é sempre um momento de ternura imenso quando salivo o dedo, e te limpo as marcas debaixo dos olhos, antes de te sossegar a cabeça no meu peito. como é ainda mais doce, quando acordo antes de ti, vejo o sol a aparecer na tua pele, semi-tapada pelos lençóis desanjarrados, e deixo-me ali, até acordares, me sentires ao teu lado, e soltares um sorriso lento, preguiçoso, mimado, enquanto sussurras baixinho que me amas - com aquele brilho doce nos teus olhos, vestidos de rimmel, apenas..

:: o palato

março 11, 2014



o palato é aquela coisa que nos deixa perceber o sabor da vida. no inicio aprendemos a distinguir os sabores básicos: o doce e o salgado. o açúcar que acompanha o café da manhã, que fecha a refeição, seja no doce ou na fruta. tal como com as pessoas doces, o açúcar acalma, harmoniza, sossega. o sal por contraponto espicaça os sabores, solta o paladar para as carnes, os peixes, os legumes salteados. deixa-nos com sede, puxa pelo vinho, pela cerveja, pelo espumante. uma pele a saber a água do mar torna qualquer beijo mais apetecível, desejado mesmo. tal como as pessoas salgadas, o sal puxa pelo lado mais saboroso, destaca, revela.

mais tarde aprendemos a gostar das misturas. como os scones, com o formato açucar/sal, aquele agri-doce que nos deixa confusos, que nos baralha a percepção, mas que estimula a atenção. uma pessoa demasiado doce, enjoa. uma pessoa demasiado salgada, cansa. mas aquelas personagens de toque agri-doce apaixonam, entre o doce carinhoso e o salgado safado. aquele dá e tira. aquele lamechas que diz a declaração mais intensa e no momento a seguir goza com o maior dos desplantes. mas com a idade refinamos a coisa, conhecemos mais sabores, mais mundos, e descobrimos os sabores mais intensos: a pimenta sempre forte em cima da massa, a hortelã caída no meio do gin, a lima amarga no meio da tarte doce, o gengibre a cortar o sushi pálido. e juro que nas pessoas vai sendo exactamente o mesmo: com a idade, há sempre um sabor novo, uma mistura inesperada, mais uma hipótese de ementa.

até que um dia, descobrimos o jindungo. uma espécie de piri-piri, mas mais forte que tudo. mistura de pimenta com picante, sabe à força do calor. daqueles sabores que entram na boca e estrilhaçam tudo o que conhecíamos antes: mais forte, mais intenso, shot de sabor, deixa-nos com um esgar de olho, um arrepio na garganta, e um sorriso no nervo. agora, perfeito, é ter a arte e engenho para misturar tudo isto numa única ementa, daquelas com um prato para cada dia, sempre bom, sempre a saber a mais. ou então, ter a sorte de encontrar alguém que tenha estas coisas todas: o açúcar no olhar, o sal no corpo, a pimenta na língua, o gengibre na boca e uma alma jindungueira - daquelas que estrilhaçam tudo. e raios míuda, tu, jindunga disfarçada de cupcake, és a ementa perfeita para o meu palato: puxas-me todos os nervos, deixas-me a boca em festa, e os olhos a brilharem. tu, deste-me cabo das certezas, dos sabores que tinha, das misturas que controlava. melhor, soltaste o jindungueiro que havia em mim. e hoje, sei saborear melhor a vida. alma gémea? mais que isso, palato igual..

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